domingo, 22 de janeiro de 2017

22 de janeiro - São Vicente de Saragoça

A devoção dos cristãos da península ibérica a São Vicente é muito antiga. O mártir era originário de Saragoça, onde foi ordenado diácono no século III. Numa das perseguições aos cristãos, tão habituais nessa altura, foi aprisionado e sujeito a terríveis torturas, resistindo sempre com grandes demonstrações de fé. 

Segundo as fontes antigas, Vicente descendia de uma ilustre família, sendo seus pais fervorosos cristãos. Embora se acredite ter ele nascido na cidade de Huesca, berço natal de sua mãe, recebeu em Saragoça formação eclesiástica.

Valério, Bispo dessa localidade, nomeou-o arcediácono, o primeiro dos sete diáconos que, segundo a praxe, davam assistência aos Prelados, na Igreja dos primeiros tempos. Sendo o Bispo Valério gago, estando assim impossibilitado de pregar e instruir os fiéis, incumbiu Vicente de exercer essa função.

Durante a perseguição do imperador romano Diocleciano, provavelmente em 304, o juiz Daciano passou por Saragoça, fazendo comparecer à sua presença o Bispo Valério e seu arcediácono. Precisando, porém, viajar para Valência, ordenou o magistrado que ambos fossem conduzidos àquela cidade, a fim de serem interrogados. Para quebrantar seus ânimos, Daciano ordenou que lhes fornecessem pouca alimentação, devendo eles carregar durante a viagem pesadas correntes, as quais pendiam de seus pescoços e mãos.

Em Valência, o cruel juiz, vendo-os saudáveis, perguntou irado aos carcereiros: "Por que lhes destes mais abundante comida e bebida?" Na verdade, sustentados pelo Céu, os dois heróis da Fé, após a terrível viagem, estavam mais fortalecidos do que antes.
Estando o Bispo Valério impossibilitado, devido ao defeito de sua fala, de responder as questões formuladas pelo tirânico magistrado, Vicente tomou a palavra. Como resultado desse primeiro interrogatório, foi o Bispo condenado ao desterro e o jovem arcediácono, submetido à tortura do cavalete, por meio da qual se desconjuntam os membros do corpo, após serem violentamente repuxados.

"O que me dizes, Vicente? Onde já vês teu miserável corpo?" -- indagou Daciano durante o suplício.
"Isto é o que justamente desejei; isto foi o objeto de meus mais ferventes desejos" -- respondeu-lhe o arcediácono. E acrescentou, desafiador: "Levanta-te pois, e com todo o teu espírito de malignidade entrega-te à orgia de tua crueldade. E já verás como eu, amparado pela força de Deus, posso mais em sustentar tormentos que tu em infligi-los."

Começou então Daciano a soltar gritos e enfurecer-se contra os verdugos, moendo-os com pauladas.
E Vicente, irônico, dirigiu-se nessa ocasião ao endemoninhado juiz: "O que dizes, Daciano? Já me estou vingando de teus esbirros; tu mesmo me trazes a vingança ao castigá-los."
O arcediácono foi depois submetido ao suplício do fogo, em um leito incandescente. Suportou tudo com semblante alegre e ânimo forte.

-"Ai, estamos vencidos!" -- exclamou Daciano

O magistrado mandou então lançá-lo num tipo de calabouço estreito, conhecido entre os romanos como Tullianum, assim descrito por Prudêncio, que anos mais tarde o visitou: "Na zona mais baixa da prisão existe um lugar mais negro que as próprias trevas, encerrado e estrangulado pelas estreitas pedras de uma abóbada baixíssima. Ali se esconde a eterna noite, sem que jamais penetre um raio de luz".
As fontes da época relatam o esplendoroso milagre ocorrido naquele Tullianum: De repente iluminou-se o calabouço; o chão, coberto de pedras pontiagudas, converteu-se num tapete de flores, enquanto anjos deliciaram os ouvidos de Vicente com suave melodia.

Informado sobre o acontecimento, Daciano deu ordens para que se curassem as chagas do mártir, tendo em vista tentar obter sua apostasia; ou, caso contrário, submetê-lo a novos suplícios.

O carcereiro, já convertido ao Cristianismo, cumpriu com alegria as ordens de Daciano e, ao mesmo tempo, permitiu a entrada dos cristãos no calabouço. Estes empenharam-se em curar as chagas do mártir, recolhendo, como relíquias panos embebidos em seu sangue.

Em meio a tais demonstrações de carinho e veneração, Vicente exalou seu último suspiro, o que causou redobrada fúria no magistrado perseguidor.
-"Se não pude vencê-lo vivo, ao menos castigá-lo-ei morto" -- exclamou Daciano ao tomar conhecimento da morte de seu supliciado.
Ordenou então que o cadáver venerável do mártir fosse jogado em campo raso, a fim de ser devorado por feras e aves.
Deus, porém, mais uma vez velou pela honra e glória de seu fiel servo. Um corvo, pousado próximo aos despojos de Vicente, afugentou aves e até mesmo um lobo, que deles se aproximaram.
-"Penso que já nem morto poderei vencê-lo" -- lamuriou-se o despótico juiz, quando se inteirou do novo e estupendo milagre. E determinou: "Ao menos, que os mares cubram sua vitória".

Assim, encerrado o cadáver dentro de um saco, foi conduzido até alto mar e lançado às ondas.
Novamente a Providência Divina não permitiu que aquela preciosa relíquia se perdesse. O cadáver foi levado milagrosamente à praia. Certa viúva cristã chamada Jônica recebeu em sonhos, algum tempo depois, uma comunicação sobre o local onde se encontravam os restos mortais de São Vicente. Acompanhada de muitos cristãos, dirigiu-se a virtuosa anciã para o lugar indicado no sonho, encontrando lá a valiosa relíquia, que foi conduzida a uma pequena igreja. Terminada a perseguição religiosa, e havendo crescido muito a devoção dos fiéis para com o admirável mártir, seu corpo foi transladado para um altar fora das muralhas de Valência.

Trechos do sermão 276 de Santo Agostinho, pronunciado na festa de São Vicente mártir, em 412.
"E como está escrito, com toda a verdade, que o forno do oleiro prova os vasos, e ao homem justo a tentação da tribulação, Vicente foi provado e cozido por aquele fogo, mas quem ardeu e crepitou foi Daciano.
Se, com efeito, não ardia, por que gritava? O que eram as palavras do irado, senão fumo do abrasado? Assim, pois, a nosso mártir que em seu coração sentia refrigério, aplicavam as chamas por fora; mas ele, incendiado pelos archotes do furor, ardia por dentro como um forno, e com ele se abrasava seu morador, o diabo. E, de fato, pelas furiosas palavras de Daciano, por seus olhos ferozes e feições ameaçadoras, pelos movimentos de todo o seu corpo, manifestava aquele seu habitante interno, e por esses sinais visíveis, como fendas do seu miserável vaso que arrebentava, e ele se enfurecia, se lhe via o diabo.

Que região, que província das que compreende o Império Romano ou até onde se tenha difundido o nome cristão, não se alegra hoje em celebrar a festa de Vicente? E quem ouviria hoje o nome de Daciano, se não tivesse lido o martírio de Vicente? Vivo, Vicente venceu Daciano; venceu-o também morto. Vivo, pisoteou os tormentos; morto, flutuou através dos mares. Mas Aquele que dirigiu entre as ondas o cadáver, entre as pontas de ferro concedeu ânimo invicto. A chama dos atormentados não dobrou seu coração; a água do mar não submergiu seu corpo".


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